NOTÍCIAS

Entrevista: Michael King explica conceito de “ruas completas” e seus benefícios às cidades


Especialista conduziu oficinas de Desenho de Espaços Públicos do PLAMUS

01/08/2014

Foto: Fransuê Ribeiro
Foto: Fransuê Ribeiro

Eleito o profissional do ano pela Association of Pedestrians and Bycicle Professionals, nos Estados Unidos, Michael King é especialista em projetar ruas e redes viárias completas, resilientes e sustentáveis há 20 anos. Responsável pela condução das atividades das Oficinas de Desenho de Espaços Públicos do PLAMUS, o arquiteto lidera projetos de mobilidade, acessibilidade e sustentabilidade, trabalhando de Nova Iorque a Nova Orleans, de Buenos Aires a Bangkok. Destaca-se por unir em seus projetos o transporte sustentável e o design.

King foi o primeiro Diretor de "traffic calming" de Nova Iorque, projetou as primeiras ruas compartilhadas dos EUA e ajudou a originar as primeiras rotas seguras para escolas. Também auxiliou na criação da estratégia de ruas completas e sustentáveis de Chicago, supervisionou a criação do guia NACTO de desenho de ruas urbanas, e projetou as instalações para bicicleta do maior sistema de BRT da Ásia, em Ghuangzou, na China.

Para o especialista, deve haver um resgate do convívio em espaços públicos nos próximos anos, e o movimento já começou. “Em sua origem, a rua não era apenas uma via de acesso a um local e, sim, o próprio local. Um espaço para se estar, passar o tempo, interagir com outras pessoas. Essa lógica original das ruas como espaços públicos de convivência e bem-estar voltou à tona de 10 anos para cá”.

Qual o conceito de “ruas completas”?

MK - O conceito é que a rua não é apenas uma estrada ou rodovia onde as pessoas dirigem. As ruas das cidades foram historicamente os pontos de encontro, de negociações, de socialização. O lugar para andar, para o lazer, e para muitas outras finalidades. Parece que a introdução do automóvel nesse espaço subitamente o diminuiu, por causa do tamanho e da velocidade do carro - ele toma uma grande parcela do espaço e da energia.

“Ruas completas” é uma nominação simpática e para as pessoas lembrarem, mas tem apenas 10 anos que começou a se difundir. É a ideia de que a rua precisa estar especificamente completa ao que chamamos de multidiversidade. Além de dirigir, as pessoas podem caminhar,  pedalar, pegar o trem ou o ônibus. Os europeus utilizam a noção do que chamamos em inglês de “loitering”, especialmente os alemães, que significa, em sua essência, o ato de permanecer. Essa noção de que a rua é um local para se estar e não apenas para passar. Um lugar em que você para e atende seu celular para conversar, onde você encontra um amigo ou para diante de uma vitrine, ou seja, há diversas maneiras de estar na rua sem necessariamente da maneira formal, com bancos onde você senta ou porque está acontecendo algum evento. Por exemplo, nos finais de semana, quando fecham algumas ruas para os carros e acontecem feiras, etc.  Parece que finalmente essa dicotomia entre lugar e movimento está terminando. Os conceitos de lugar e conexão estão se fundindo.

Temos que ter clara a diferenciação entre ‘ruas’ e ‘estradas’ (ou avenidas), uma estrada tem cruzamentos, diversas faixas, acesso limitado – não é uma rua. É primordialmente para os carros. Pode ter corredores BRT, paradas de ônibus, ciclovias, mas sua função principal é ser uma passagem. Mas quando a estrada entra na cidade, torna-se uma rua. E a rua não deve ser feita apenas para ser uma passagem, mas sim também um local para se estar. Essa é a noção histórica das ruas até 1920. Houve um grande movimento na década de 1920 nos Estados Unidos por aprovação de leis para haver limites de velocidades mais baixos – como 25 a 30 km/h – nas cidades. Quem vendia carros ficou apreensivo, pois afinal, por que você compraria um automóvel se não pode dirigi-lo com rapidez? Então, houve protestos. Até esse momento, não havia essa noção.

Um dos pontos centrais de minhas apresentações é mostrar que as pessoas tiveram que ser treinadas para atravessar a rua nas faixas, pois tradicionalmente utilizavam as ruas para jogar futebol, no Brasil, ou baseball, nos Estados Unidos, por exemplo. Um lugar onde as crianças brincavam.

 

Foto: Fransuê Ribeiro
Foto: Fransuê Ribeiro

Então nossas ruas eram bons lugares para se estar, mas hoje fizemos delas os piores lugares para se estar...?

MK - Bem, não diria o pior lugar – é bom para dirigir. Há 100 anos, quando o carro era novidade era bom. Eu não gosto de culpar ninguém ou dizer que tomaram o caminho errado. Gosto de indicar o que esperamos delas hoje.  Há estudos do início do século XX que diziam que em 100 anos todos estariam se deslocando por helicópteros. Existiram muitas visões futuristas. As pessoas que fizeram todo esse trabalho e análise estavam apenas construindo a cidade que imaginavam para o futuro – uma cidade futurista onde todos podem dirigir. Eles estavam imaginando o que aconteceria e, de fato, aconteceu. Hoje todos estão dirigindo. E presos no congestionamento.

 

Já que estamos falando em cidades do futuro, podemos dizer que o conceito de “ruas completas” é o futuro para as nossas cidades?

MK - É o futuro atual. O que será o futuro daqui a 50 anos? Eu não sei, mas possivelmente não haverá mais petróleo. Acredito que já atingimos o pico máximo de petróleo, é difícil dizer, mas há muitas pessoas que especulam que atingimos o pico de petróleo e agora a tendência é apenas diminuir. Então, em 50 anos, poderemos não ter mais gasolina, ainda que estejam encontrando mais petróleo no Canadá e outros lugares.  Mas em 100 anos ou menos, muitas pessoas podem querer carros com outras tecnologias, híbridos ou elétricos e etc. Então, é difícil dizer.

Filosoficamente o que acontece é que à medida que a sociedade se desenvolve em termos de renda e história, torna-se capaz de fornecer necessidades básicas às pessoas. Assim, uma vez que não existam mais pessoas com fome nas ruas, bons hospitais, cuidados médicos, educação, um lugar para morar, etc, as pessoas começam a valorizar mais a vida. A qualidade de vida se torna importante. Na Dinamarca, por exemplo, há pesquisas que mostram que todos são felizes. Isso acontece porque lá ninguém tem fome, não há miséria, os serviços e hospitais funcionam. Tudo é bom, o que torna as pessoas felizes. Já no mundo em desenvolvimento, onde as pessoas queimam seus móveis para se aquecer ou não tem o que comer, a vida passa a ter menos valor. Não estou dizendo que a vida vale mais ou menos num país rico ou pobre, obviamente é igual em valor, mas é o modo como você a encara.

Por exemplo, na Suécia, onde existe o Vision Zero, eles decidiram: vamos ter uma rede de transporte sem mortes, porque a vida é muito importante para nós. É para essa direção que o conceito de ruas completas e o da própria Vision Zero apontam. As pessoas estão dizendo: ‘não vou aceitar que meu filho seja morto no caminho para a escola. Não vou aceitar isso’. As pessoas estão tomando essa causa e começaram a perceber que alguém morrer no trânsito não é acidente.

 

Você trabalhou em diversos países ao redor do mundo. Qual foi o seu projeto mais desafiador?

MK - A Índia sempre é a mais desafiadora, pois é um país muito único. Tem seus próprios métodos de fazer diversas coisas – para bem ou para o mal, é um local único. Os países da América Latina, por terem uma similaridade com os europeus, tudo é mais palpável para mim. É desafiador também, mas não como a Índia. Quando vou fazer uma apresentação neste país tenho que mudar as imagens, pois o contexto é completamente diferente. Por tudo isso se torna mais desafiador.

 

Olhando para os países da América Latina, especialmente a Argentina e o Brasil, acredita que estamos muito distantes do conceito de ruas completas e seguras?

MK - Depende. Trabalhamos com a cidade de Buenos Aires e tivemos sucesso ao modificar algumas ruas. Também quiseram introduzir o conceito do Vision Zero (Suécia) – isso considerando que o momento econômico lá não é o mais favorável. No Brasil há Curitiba, na década de 1970 com Jaime Lerner; o Rio também está fazendo algumas mudanças para as Olimpíadas e São Paulo realizou o Projeto Butantã e outros. Acredito que nada se transforma do dia para noite mas, pessoalmente, gosto muito de vir para a América Latina. É meu destino preferido. Amo a cultura e as pessoas. O fuso horário também é mais amigável para quem vem de Nova York como eu.

 

Qual sua opinião sobre projetos como o PLAMUS, que propõem um planejamento teórico e prático, em longo prazo para soluções locais de mobilidade em nível metropolitano?

MK - O PLAMUS é brilhante. É brilhante ter um consórcio que está tentando planejar algo, com financiamento do banco nacional de desenvolvimento, na cidade de Florianópolis, que tem um potencial enorme, e arredores. É absolutamente brilhante unir a teoria e a prática, pois é a partir daí que começamos a ver mudanças reais.

Há uns dois anos, trabalhamos em um projeto na Lapa, no Rio de Janeiro, e algumas mudanças foram implementadas. Foi bonito de ver, porque os cariocas são apaixonados por sua cidade. Quando começamos a explicar que tornaríamos a cidade deles um lugar ainda melhor para se viver, todos os envolvidos – secretarias de Planejamento, Obras, Transportes, e outras – ficaram muito felizes em trabalhar no projeto. Então, por que não podemos ter esse mesmo sentimento em Florianópolis? Vocês já têm um belo lugar, podemos torna-lo ainda melhor.

 

Mas para que isso ocorra, precisamos de pessoas que assumam a responsabilidade, certo?

MK - Exato. Você precisa ter alguém que tenha coragem, alguém que tome as rédeas, como costumamos dizer. Não tenho o conhecimento político local, mas o que sei é que as cidades que alcançaram sucesso e progresso conquistaram isso por meio de políticos ou grupos políticos realmente dispostos a mudar a situação. Aqueles que fazem um lobby que não muda nada estão mais preocupados em assistir à novela ou ao futebol.


COMPARTILHE

Consórcio

Comunicação e Participação Social

Pesquisas

Cooperação Técnica

Estudo de Mercado

Transporte não-motorizado

© PLAMUS 2013 - Comtacti